BBC News Brasil esteve no primeiro — e, até o momento, o único — hospital de cuidados paliativos do SUS, onde não há pronto-socorro nem UTI.
Por: BBC NEWS

Era uma segunda-feira no início de junho, céu claro na capital da Bahia após dias seguidos de chuvas intensas, e Ayrton, de 90 anos, estava em uma das três camas espalhadas por um quarto amplo e bem iluminado no hospital Mont Serrat.
“Quando me disseram que eu viria para este hospital, eu não sabia que ele ficava aqui”, seguiu, falando das instalações na Ponta de Humaitá, no alto do bairro Monte Serrat, na Cidade Baixa.
As lembranças forçaram Ayrton a fazer pausas na fala. Tomando fôlego, com a voz embargada, falou com detalhes dos anos como corredor, da família e do nascimento de um dos filhos naquele bairro.
Nascido em Pojuca, um pequeno município na Região Metropolitana de Salvador, ele chegou à capital por volta dos 8 anos com a família e, até hoje, se encanta com a cidade de onde nunca mais saiu. “É linda”, disse.
Abriu uma agência de turismo, casou-se e tocou a vida entre o esporte, o trabalho e a família.

Foto: Crédito: Vitor Serrano / BBC News Brasil
Ayrton ficou surpreso quando descobriu no hospital, por fim, que estava em um pedaço da cidade que trazia tantas lembranças boas. “Quando cheguei aqui, minhas forças se renovaram.”
Ele ocupava um dos 64 leitos do Mont Serrat, que funciona em um casarão do século 19, próximo a um dos pontos mais conhecidos de Salvador, a igreja do Senhor do Bonfim.
Antes, era o hospital de infectologia Couto Maia, mas desde o fim de janeiro é ali que se instalou o primeiro, e até o momento único, hospital decuidados paliativos do Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil.
Os cuidados paliativos focam na melhora da qualidade de vida e dos sintomas dos pacientes com doenças graves ou que não têm cura. A abordagem, que também é centrada no cuidado dos familiares, não acelera nem abrevia o processo de morte do paciente, mas busca reduzir o sofrimento físico, psicológico e espiritual.
“Aqui, o foco da gente não é a morte. Aqui, o foco da gente é cuidado enquanto vida tiver”, diz a médica Karoline Apolônia, coordenadora do Núcleo de Cuidados Paliativos da Secretaria de Saúde da Bahia.
“Perguntaram se meu pai queria fazer a barba, para que time ele torce, o que gosta de comer, se gosta de música. Então, a gente relaxou, por saber que ele está sendo bem cuidado”, conta Ayrton Junior, filho do corredor Ayrton.
Junior diz que o pai tem câncer de próstata e tratou com radioterapia um câncer na pele do nariz e da cabeça.
“[Ele] correu várias maratonas, tenho vários troféus dele lá em casa inclusive”, lembra.
“A gente sente que o que é importante para meu pai é o conforto presente, no momento presente. Um dia depois do outro. Ele precisa ficar bem, é o nosso pensamento, é o pensamento da família dele.”

Um hospital sem UTI
Caminhar pelos quatro pavilhões do Mont Serrat é perceber também que ali não funciona um hospital comum.
Não há uma sala de reanimação — já que isso contrariaria um dos critérios para ingressar no hospital —, nem uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Karoline, que compara a internação em uma UTI como correr uma maratona, diz que isso seria incompatível com a condição dos pacientes que ingressam ali.
“Se eu coloco esse paciente para correr a maratona, eu só vou trazer a ele sofrimento”, afirma a médica. “Então, em vez disso, a gente sugere a ele sentar aqui e contemplar o pôr do sol. Aproveitar para dizer desculpa, obrigada, eu te amo e tchau.”
Para um paciente ter indicação de cuidados paliativos, ele deve ser encaminhado por uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), atendendo a alguns critérios, como ter um diagnóstico de doença grave e tempo estimado de vida de seis meses.

Foto: Vitor Serrano/BBC News
A família e o paciente também já devem ter enfrentado o que Karoline chama de “conversas difíceis”, isto é, discutir um prognóstico irreversível e saber que UTI não estaria entre as opções para mantê-lo vivo.
Na sala tem um sofá, uma televisão, água, café e um abajur com luz indireta. Na parede de entrada, uma frase de Ana Cláudia Quintana Arantes, uma das paliativistas pioneiras e mais célebres do país, está escrita de fora a fora: “Um minuto de silêncio. Preciso ouvir meu coração cantar.”
“Este hospital foi muito sonhado, por muitos anos”, contou a médica Karoline, pernambucana de 44 anos, há 11 em Salvador.
O sonho teve início em 2019, quando surgiu o Núcleo de Cuidados Paliativos da Secretaria de Saúde da Bahia, formando médicos especialistas nesta área em todo o Estado.
O núcleo foi pioneiro: foi somente em maio de 2024 que o Ministério da Saúde lançou Política Nacional de Cuidados Paliativos no âmbito do SUS. Na mesma esteira, desde 2023, os cuidados paliativos são disciplina obrigatória nas faculdades de medicina de todo o país.
Na Bahia, o projeto tomou corpo quando foi feita uma radiografia da rede.
“Percebemos que entre 20% e 30% dos pacientes de toda a rede pública da Bahia tinham indicação de ser transferidos para uma unidade especializada em cuidados paliativos”, contou Karoline.
“O paciente recebe alta sabendo e conhecendo que ele continua tendo a sua doença”, explicou Yanne. “Mas ele volta para casa com a condição de estar conectado com o que muitas vezes é sagrado para ele, que é a sua família.”
Esses pacientes que recebem alta podem continuar o tratamento em casa, indo eventualmente ao ambulatório do Mont Serrat, ou acabam falecendo cercados de parentes e amigos.
A BBC News Brasil fez duas visitas à instituição, uma no início de abril, e outra exatamente dois meses depois. Nenhum paciente que estava na primeira visita continuava ali na segunda.

Naquele momento, Donizete estava internado em outro hospital, também público. “Ele sofria demais ali, passava muito mal, gritava”, conta ela, emocionada. Em uma palavra, ela resumiu o estado que Donizete se encontrava quando chegou ao Mont Serrat: “Morto”.
“Mas chegamos aqui e fomos tão bem tratados, que ele foi melhorando”, ela conta. “Todo mundo, desde as meninas da limpeza, até as psicólogas daqui, nos acolheram. Isso não existe em nenhum outro lugar, por isso eu digo que isso aqui é um pedacinho do céu”, diz ela, revelando na prática os contrastes dentro do próprio SUS.
A equipe inteira do hospital, composta por 430 pessoas, passa pelo mesmo treinamento. Seguranças, faxineiros, enfermeiros e médicos participam de dinâmicas que discutem empatia e questionamentos como: de que maneira você gostaria de ser tratado se chegasse aqui? O que você pediria nesse tempo?
E essa pergunta é repetida todos os dias, com os pacientes.
“Me perguntam o que eu quero, o que eu mais gosto, o que eu quero para me alimentar? Eu tô aqui como a grã fina”, disse, às gargalhadas, a dona de casa Helita Maria da Silva, de 86 anos, uma animada senhora que recebeu a reportagem, assim como Ayrton, na segunda visita ao hospital, feita no início de junho. “E onde é que eu vou achar isso?”
Ao lado do filho, o auxiliar de produção João Raimundo da Silva Vitória, de 54 anos, ela descansa em uma cama, enquanto assiste à televisão.
“Ela está aqui sendo bem tratada, depois que decidimos que não iríamos operá-la devido à idade avançada dela”, contou João, resumindo com as próprias palavras os cuidados paliativos da mãe, que tem um câncer no fígado.
“Sou tratada como um bebê”, finalizou Helita, que receberia alta dois dias depois.

O paliativismo prega, segundo ela, a ortotanásia: os cuidados com controle dos sintomas para o processo de fim de vida natural. Já a eutanásia é a prática de provocar, sem dor, por meio de uma injeção que para o coração, a morte de alguém que esteja padecendo de alguma enfermidade.